Título da Unesco tem sido fundamental na preservação
do Plano Piloto conforme o desenhado por Lucio Costa e executado no governo de
Juscelino Kubitschek, de 1956 a 1960
Primeira (e ainda única) cidade moderna com tal honraria, a capital do
país foi inscrita na lista de Patrimônio da Unesco em 7 de dezembro de 1987.
Coube a um arquiteto francês a defesa candanga no processo de tombamento
Nunca havia aparecido uma candidata tão nova. Com
apenas 27 anos e ainda em formação, Brasília não tinha a história de uma Paris.
Nem monumento antigo como a Acrópole de Atenas. Tampouco um conjunto
arquitetônico como o de Roma. Era uma ousadia e tanto a capital brasileira
entrar para o seleto grupo das cidades com o título de Patrimônio Cultural da
Humanidade da Unesco, o braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para a
Educação, Ciência e a Cultura. Mas o reconhecimento veio, em 7 de dezembro de
1987.
Passados 30 anos, a primeira cidade moderna a
receber tal honraria, Brasília sofreu agressões das mais diversas formas. Viu
brotar cidades não planejadas e a ocupação de áreas onde não deveria haver
construções de tipo algum. Mas o título da Unesco se mostrou fundamental na
preservação do Plano Piloto conforme o desenhado por Lucio Costa e executado à
risca no governo de Juscelino Kubitschek, que em 21 de abril de 1960 inaugurou
uma nova forma de se viver no Brasil e garantiu aos moradores da capital uma qualidade
de vida única no país.
Sem proteção
Até então, o título da Unesco havia sido concedido
só a cidades construídas antes do século 20. A proposta, feita sob a iniciativa
do então governador de Brasília José Aparecido de Oliveira, foi examinada e aprovada
pelo Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco com base na documentação oferecida
pelo governo da capital e em relatório do arquiteto francês León Pressouyre,
do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), relator do
processo da candidatura candanga.
Nos documentos, Brasília apresentou as principais
características e os valores do plano urbanístico. Virtude referendadas por
Pressouyre, em maio de 1987. Ele, porém, apontou a vulnerabilidade da nova
capital ante as pressões do desenvolvimento predatório que ameaçava (e ainda
ameaça) com a descaracterização. Brasília sequer tinha proteção nacional.
Tesourinha no Eixão: um dos símbolos de uma cidade
planejada com quatro escalas de concepção urbana integradas de forma harmoniosa
Gênio criativo
O comitê da Unesco reconheceu a obra-prima do gênio
criativo humano e exemplo eminente de conjunto arquitetural que representava
período significativo da história, um marco do movimento moderno. Mas, para
ganhar o título de patrimônio mundial, precisava de leis para protegê-la de
alterações e deturpações. A cidade construída em 1.296 dias, a partir de 1956,
não contava com essa cobertura. Não havia nada que a livrava dos males da
especulação imobiliária e de outras ameaças.
Ao tomar conhecimento desse entrave, José Aparecido
de Oliveira publicou o decreto, em outubro de 1987, regulamentando a Lei n°
3.751, de 13 de abril de 1960, de preservação da concepção urbanística de
Brasília. Em síntese, a lei manda respeitar as quatro escalas que definem os
traços essenciais da capital, ou seja, as quatro dimensões dos quatro modos de
viver na cidade.
Criadas por Lucio Costa para organizar o sítio
urbano que havia apresentado no concurso público aberto pelo Governo Federal
para escolher o projeto da nova capital brasileira, as escalas são definidas
como monumental (a do poder), residencial (das superquadras), gregária (dos
setores de serviços e diversão) e bucólica (das áreas verdes entremeadas nas
demais, incluindo a vegetação nativa). Com elas, o urbanista deixou claro as
funções de cada espaço da cidade, definindo os setores de trabalho, moradia,
serviços e lazer, em harmonia com a natureza.
Era justamente esse conceito o grande trunfo de
Brasília, que trazia um desenho único de cidade. Diferentemente do que muitos
pensam, seria tombado o projeto urbanístico de Lucio Costa e não os prédios
modernistas de Oscar Niemeyer. Esses viriam a ser protegidos por meio de outra
leis. Mas as obras de Niemeyer contribuíram para a conquista do título da
Unesco. Os representantes da organização ressaltaram que cada elemento — da
arquitetura das áreas residenciais e administrativas à simetria dos edifícios —
dos traços de Niemeyer estavam em harmonia com o desenho geral da cidade.
Assim como o plano de Lucio, a Unesco considerou os prédios inovadores e
criativos.
EUA contra
A definição da candidatura de Brasília aconteceu em
7 de dezembro de 1987, em Paris, na 11ª Reunião Ordinária do Comitê do
Patrimônio Mundial. Vinte e um integrantes do Comitê estavam no plenário. A
representante dos Estados Unidos, Susan Reccem, se manifestou contra a inclusão
de Brasília na lista de patrimônio da humanidade. Ela chamou a atenção do
plenário para o parágrafo 29 das Orientações para a aplicação da convenção do patrimônio
mundial, no qual se indicava o adiamento do exame das cidades do século 20 para
depois que os sítios históricos tradicionais fossem protegidos.
Mais uma vez, León Pressouyre saiu em defesa de
Brasília. Ele argumentou seria proteger uma obra singular, moderna, única
cidade construída no século 20 a partir do nada (o francês usou a expressão
latina ex-nihilo) para ser a capital do país. Houve um silêncio. Sinal da
aprovação consensual da proposta. Mais uma ou duas considerações e Brasília se
transformou em patrimônio cultural da humanidade. Continua a única não secular
com tal honraria.
Históricas
No caso do Brasil, Ouro Preto (em
1980), até então, detinham tal título o centro histórico de Olinda (1982), as
ruínas jesuítico-guaranis de São Miguel das Missões (1983), o centro histórico
de Salvador (1985) e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas
(1985).
Avião, pássaro gigante, borboleta
Para muitos, o Plano Piloto lembra um avião. Mas
Lucio Costa o comparava a uma borboleta. O arquiteto Leon Pressouyre, o
relator da candidatura de Brasília ao título da Unesco, viu “um pássaro gigante
voando em direção ao sudeste”. O certo é que o tombamento protegeu uma ideia de
liberdade. O projeto de Lucio Costa é baseado em quatro escalas (veja quadro).
A bucólica é uma das mais importantes e traduz o espírito de Brasília como
cidade-parque, com extensas faixas de gramado e áreas verdes, canteiros e regiões
arborizadas.
A Unesco tombou 13 itens do Plano, com a seguinte
delimitação geográfica em 112.25 quilômetros quadrados: a leste, vai até a orla
do Lago Paranoá, a oeste até a Estrada-Parque Indústria e Abastecimento (Epia),
ao sul para no córrego Vicente Pires e, ao norte, no córrego Bananal.
Além das Asas Sul e Norte, fazem parte da área
tombada a Candangolândia, o Sudoeste, a Octogonal, o Cruzeiro e os setores de
clubes. Todos têm de seguir a escala urbanística e o plano diretor. É proibido,
por exemplo, colocar grades que impeçam a circulação de pessoas por meio de
pilotis de prédios. Nos últimos 30 anos, leis distritais e federais reforçaram
a proteção ao plano de Lucio Costa. Tombaram até árvores. Mas houve fortes
ameaças a características fundamentais da cidade, como o acesso livre à orla do
Lago Paranoá e a tentativa de se aumentar o gabarito dos blocos das
superquadras para sete andares.
As escalas do Plano Piloto
O projeto de Lucio Costa divide Brasília em quatro
escalas de concepção urbana:
Gregária
Representada pelos setores de convergência da
população: comercial, bancário, de diversões e cultura, hoteleiro,
médico-hospitalar, de rádio e televisão. Tem como ponto central a Plataforma
Rodoviária, traço da união de Brasília com as demais cidades do DF e Entorno.
Monumental
Traduz Brasília como centro de decisões do poder,
com os ministérios e outros prédios públicos às margens do Eixo Monumental. Já
a escala gregária representa o coração da cidade, na região em torno da
Rodoviária do Plano Piloto.
Residencial
Representa o novo conceito de moradia desenvolvido
pelo urbanista, cujo símbolo maior são as superquadras. Pelo projeto, cada unidade de vizinhança teria comércio, igreja,
escola e outros equipamentos comunitários.
Bucólica
Permeia as outras três. São os gramados, praças,
jardins, áreas de lazer, orla do Lago Paranoá - os espaços destinados ao
deleite, descanso e devaneio, que dão à Brasília o título de cidade parque.
(*) Renato Alves - Fotos: Bento Viana - Breno Fortes/CB/D.A.Press - Google - Correio Braziliense