Athos Bulcão ao lado do Painel Igrejinha
*Por Guilherme Goulart
Desde os primeiros anos de fundação,
Brasília vê parte do patrimônio artístico e cultural despedaçado pela
insensibilidade. Muitos empresários, empreiteiros, moradores e sacerdotes
desrespeitam a memória da cidade ao reduzir a entulho obras de arte integradas
à arquitetura, uma das maiores relíquias estabelecidas pelo modernismo. Movidos
pela ignorância, pelo preconceito ou pela ganância, colocam abaixo o que há de
diferente, inusitado, apaixonante e provocador em uma construção. A brutalidade
empedernida ergue britadeiras, picaretas e pás para varrer da eternidade a
beleza singular das belas-artes brasilienses.
Um dos primeiros assassinatos
artísticos de que se tem notícia por aqui ocorreu na Igrejinha da 307/308 Sul.
O crime às cores e às formas fora cometido no início dos anos 1960, quando três
afrescos do artista italiano Alfredo Volpi, feitos especialmente para o templo,
foram apagados. Um dos trabalhos pintados nas paredes do local revelava a
imagem de Nossa Senhora com o menino Jesus, envoltos por bandeirolas sobre um
fundo azul. Se por pressão da comunidade ou se pela censura de algum padre
enraivecido, não se sabe com exatidão, o certo é que a obra acabou encoberta
pela pequenez humana até ser revisitada pelo piauiense radicado em Brasília
Francisco Galeno.
Mas uma das maiores vítimas dos ataques
contra a cultura de Brasília chama-se Athos Bulcão, o único entre os principais
nomes da construção da capital a escolher a cidade como casa. A cada
levantamento, diminui o total de obras assinadas por ele no DF — hoje, seriam
262. Em 2009, a demolição do Clube do Congresso, na 902 Sul, destruiu três
painéis de uma vez: o da piscina, o do banheiro e o que, trabalhado em gesso,
embelezava a escadaria. Outro golpe fatal ocorreu na reforma do Palácio do Planalto,
também em 2009, que removeu três paredes de azulejos. Elas foram reerguidas em
outro piso do edifício oficial, mas a Fundação Athos Bulcão (Fundathos) as
retirou do catálogo do multiartista.
Entre todos os casos de desrespeito ao
legado de Athos, um me marcou pessoal e profissionalmente. Na noite de 21 de
setembro de 2011, presenciei uma agressão explícita ao talento desse carioca do
Catete. Estava de saída da redação do Correio quando recebi a denúncia de uma
moradora desesperada com o que acontecia em um posto de gasolina do início da
Asa Norte. Segundo ela, operários destruíam, a marretadas, o painel de azulejos
criado em 1975. Pedi um carro, supliquei por um fotógrafo e aceleramos para o
local. Acreditava, ingenuamente, que pudéssemos salvar aquela obra. Ao
chegarmos, nada restava. Só pedaços das peças de 30cm de altura por 15cm de
largura descartados pelo chão como chiclete mastigado.
Felizmente, também há flores no
caminho. Após anos adiando uma visita ao Palácio da Alvorada, dediquei,
recentemente, um dia de férias à empreitada de conhecer a residência da
Presidência da República. A surpresa do passeio se mostrou assim que entrei na
capela erguida à esquerda do prédio principal. Athos Bulcão assina o projeto
decorativo, desde a porta de entrada até as paredes. O teto é de beleza
exemplar, composta por símbolos do cristianismo desenhados em tons de
amarelo-ouro e azul-anil. A beleza preservada hipnotiza. É tanta que a guia se
esqueceu de chamar a atenção quanto a autoria do tesouro sobre as nossas
cabeças. Entre achados e perdidos, a arte brasiliense sobrevive.
Capela Nossa Senhora da Conceição – Palácio da Alvorada — 1958; Athos Bulcão: Porta de
alumínio pintado de preto e vidros de cor – Porta de entrada- PinturaTeto - Projeto
Arquiteto: Oscar Niemeyer; Palácio da Alvorada, Brasília
(*) Guilherme Goulart – Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog -
Google