Incentivo para preservar
*Por Luiz Calcagno »
Pedro Grigori
Uma parceria entre a Secretaria de Meio
Ambiente e o Fundo Global de Meio Ambiente garantirá R$ 2.633.500 para apoio a
iniciativas de restauração de nascentes no DF. O secretário da pasta, André
Lima, garante que as ações sairão do papel ainda no próximo semestre. “No
momento, estamos fazendo contratações de organizações para realizar a ação. A
restauração será feita ao redor das bacias do Paranoá e do Descoberto.” Sem
esperar o governo, porém, moradores de chácaras próximas ao Descoberto vêm
desenvolvendo métodos para preservar nascentes e córregos há quase uma década.
Os agricultores conveniados à Cosir, por exemplo, enviam funcionários para
ajudar na limpeza e no cuidado com a margem do Rodeador e de nascentes da
região.
Trabalhos individuais também fazem a
diferença. Numa chácara de 25 hectares em Brazlândia, Yolanda Yuzuki, 56, tenta
fazer o certo para garantir o futuro hídrico das próximas gerações. Produtora
de grãos, a mulher tinha uma lagoa na propriedade, mas sempre que a chuva
parava, o local secava. Há quatro anos, decidiu reflorestar a região e, como
recompensa, a lagoa hoje transborda e começa a fornecer água para rios que
auxiliam o abastecimento do DF. “Quando comecei, me chamavam de louca. Falavam
que estava ocupando minhas terras com plantas que não dão em nada. Mas vejo
como algo muito maior, é garantir um futuro.”
Outra medida para conservar os
mananciais é o projeto Adote uma nascente, iniciado em 2001. Atualmente, a
iniciativa é um dos principais trabalhos para tratar e registrar nascentes na
região. São 245 cadastradas no banco de dados — um número pequeno, perto dos 10
mil estimados. Quem se habilita como padrinho de um olho d’água promove ações
de preservação da área e mantém diálogo permanente com o Instituto Brasília
Ambiental (Ibram). Uma das vantagens é que proprietários de baixa renda que
possuem nascentes em casa têm acesso gratuito a informações sobre como proteger
as fontes.
O diretor do curso de engenharia
ambiental da Universidade Católica de Brasília, Marcelo Resende, explica que
ações como essas são ímpares para o abastecimento do DF. “O reservatório de
Santa Maria está protegido pelo Parque Nacional de Brasília, então ele não
sofre tanto quanto o Descoberto. A proteção de nascentes não se resume a
impedir a captação de água, mas cuidar da região ao redor. Quando você planta
no solo, não o impermeabiliza, não constrói edificações, a água entra na terra
e deságua em nascentes e córregos, chegando aos reservatórios.”
Cercados por invasões, mananciais que
brotam na capital têm sido destruídos. No momento em que a população sofre com
a maior crise hídrica da história, águas que deveriam chegar à Barragem do
Descoberto são desviadas irregularmente -
O resumo da degradação: cano e reservatório captam água diretamente da
nascente, ajudando no processo de morte dos olhos água
Mata fechada. A água brota do chão e
corre em direção a córregos e rios. O fluxo que emana dos lençóis freáticos
alimenta bacias hidrográficas inteiras. Os cerca de 10 mil mananciais do
Distrito Federal, por exemplo, são fundamentais para as bacias de Tocantins e
Paraná, duas das maiores do país, além de abastecer as residências dos
brasilienses. Não é à toa que a região é conhecida como Berço das Águas.
O tratamento dado a essas fontes, no entanto, está muito aquém da importância
que elas têm. Dentro de uma Área de Preservação Permanente (APP), por exemplo,
o Correio flagrou mangueiras, bombas e até reservatórios de 500 litros captando
a água que deveria chegar à barragem responsável pelo abastecimento de 66% do
DF. O descaso é emblemático quando a capital vive a pior crise hídrica da
história.
A maioria dos abusos exibidos pela
reportagem ocorre em 20 invasões de luxo, em Brazlândia, às margens do Ribeirão
Rodeador. Uma das residências ergueu uma área de lazer ao lado da nascente,
quando, por lei, é proibida qualquer construção humana em um raio de 50 metros
desses locais. As mangueiras desviam a água dos mananciais para caixas-d’água,
piscinas e até tanques de criação de peixe. Outro exemplo histórico de
parcelamento irregular de terra que destruiu dezenas de nascentes é a Região
Administrativa de Vicente Pires. E, como se não bastassem os abusos ilegais, a
destruição dos olhos d’água foi institucionalizada em Águas Claras, cidade
criada a partir da Lei Distrital nº 385, que também cobriu outras centenas de
fontes naturais com concreto e aço.
Promotora da Promotoria de Justiça de
Defesa do Meio Ambiente (Prodema) do Ministério Público do DF e dos Territórios
(MPDFT), Marta Eliana de Oliveira critica a política de regularização de
condomínios que ocorreu na capital federal na última década. Ela explica que os
moradores provocaram danos ambientais graves, inclusive, destruindo nascentes,
e que os endereços acabaram legalizados “mesmo com passivos ambientais”. “Isso
estimulou algumas pessoas a comprarem novas terras. E aqueles que tinham de
resolver uma questão ambiental, muitas vezes, não resolveram. Agora, o GDF deu
início às derrubadas de invasões de luxo e, em seguida, vem o governo federal e
emite a Medida provisória 759, de dezembro de 2016, que, novamente, dificulta
esse trabalho de derrubada. Estamos enxugando gelo”, reclama a promotoria.
Marta não se restringe às críticas à
ocupação desordenada do solo. “A ordenada também traz graves danos”, ressalta.
A promotora destaca algumas ações que impediram que o GDF implantasse setores
habitacionais, tanto em áreas de nascentes quanto em regiões de recuperação de
aquífero, onde a água da chuva tem mais facilidade para se infiltrar no solo e
alimentar os lençóis freáticos da região. “Em 2009, entramos com uma ação e
conseguimos impedir a criação do Setor Habitacional Catetinho, dentro de uma
Área de Proteção de Manancial. Em 2012, entramos com outra ação, contra o Setor
Habitacional Vargem da Bênção, no Recanto das Emas, que ia duplicar a população
da região administrativa sem nenhum estudo ambiental e sobre áreas de
nascentes, ao longo da rodovia. Porém, o Taquari, no Lago Norte, ocupa uma área
de recarga de aquífero do Lago Paranoá, que é a salvação do abastecimento da
cidade. Vai impermeabilizar o solo e prejudicar a recarga de um dos principais
mananciais”, alerta.
Roubo de água
O clima vivenciado na Reserva D, em
Brazlândia, lembra o roteiro de um filme de máfia. Agricultores da região
recebem ameaças de morte dos invasores, e os olhares de caseiros deixam claro
que câmeras não são bem-vindas naquela área. Um grupo formado por familiares de
agricultores das 49 propriedades escrituradas buscam que a lei seja respeitada
e que a água que deveria ir para o Canal do Rodeador, usado para abastecer as
chácaras e auxiliar nas plantações da região, não seja desviada. Segundo a
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do DF (Semarh-DF), na
reserva próxima ao Ribeirão Rodeador, há, pelo menos, 20 residências. Uma das
maiores dificuldades enfrentadas por técnicos do órgão para determinar o número
de mananciais no DF é que grande parte deles estão em locais isolados ou dentro
de propriedades particulares.
Em uma delas, a reportagem do Correio
encontrou uma caixa-d’água, canos e uma bomba, montados sobre a nascente, para
abastecer, irregularmente, propriedades da região. Em um dos endereços
beneficiados, logo em frente à nascente, reservatório de peixe, há uma
estrutura de luxo. Poço, chuveiro ao ar livre e espreguiçadeiras aguardam os
proprietários, que vão “curtir a natureza”. “No meio de semana, é tudo vazio;
no máximo, ficam os caseiros. Os donos só vêm no fim de semana para aproveitar
a água”, conta um agricultor da região, que preferiu não se identificar.
Em outra invasão, os moradores criaram
uma área de lazer em cima do curso da nascente. “Nos domingos, eles ligam o som
alto, assam carne e bebem cerveja”, relata o morador da região. Prova disso são
as garrafas vazias que enchem um engradado largado próximo ao manancial. A
ocupação deixa marcas visíveis. Em outro ponto, a fonte secou. A vegetação está
lá, mas o curso natural que era feito pela água não passa de uma marca no solo,
um caminho de terra seca. A reportagem procurou a Agência Reguladora de Água,
Energia e Saneamento do DF (Adasa) para comentar os cuidados com as nascentes e
os flagrantes feitos pela reportagem, mas a assessoria de imprensa do órgão não
quis se manifestar.
Prejuízo
O roubo de água é um dos responsáveis
por 35% de perda na captação da Companhia de Saneamento Ambiental (Caesb). Quem
afirma é o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, que abordou o
tema na última semana, durante participação em audiência pública no MPDFT. No
evento, Rollemberg (PSB) reforçou que o problema da grilagem de terras é um dos
causadores da situação hídrica da capital. “A perda da captação não ocorre por
irresponsabilidade da Caesb, é fruto do roubo de água. E, para impedir isso,
começamos a discutir, em âmbito de governo, um decreto que permita a empresa
instalar redes de água e hidrômetros em áreas não regularizadas, para, assim,
conseguirmos cobrar as pessoas pelo consumo e impedir o uso inconsciente da
água”, declarou o chefe do Executivo local.
Em janeiro deste ano, uma operação do
GDF desocupou 20 mil quilômetros quadrados de propriedades irregulares em
Brazlândia, onde encontravam-se seis tanques de captação irregular de água.
Dois meses depois, no local, ainda existem entulhos de uma das grandes casas
derrubadas. Produtora de flores da região, Rosany Jakubowski, 38, conta que o dono
do imóvel ridicularizava quem dizia que um dia ele seria tirado de lá. “Ele
gritava que não tinha homem na Terra para tirar ele daqui. Era uma casa enorme,
e ele tinha uma caixa de esgoto na margem do Canal Rodeador. E se aquilo
vazasse? Ia esgoto para a água que lava a alface e as verduras de todo o
Distrito Federal”, ressalta a mulher.
Capital das águas
Justamente por ser uma área repleta de
nascentes, a região de cerrado que engloba o Distrito Federal e o Entorno não
tem rios caudalosos. Com a grande quantidade de mananciais, a região ganhou o
nome de berço das águas. A reserva de Águas Emendadas, por exemplo, concentra
uma nascente, dá origem às bacias hidrográficas do Paraná e de Tocantins — duas
das maiores do país. Ao todo, os milhares de olhos d’água que brotam no terreno
da capital e da região metropolitana de Brasília abastecem oito das 12 maiores regiões
hidrográficas brasileiras.
Baixa no volume dos aquíferos
Há uma década,
Yolanda Yuzuki faz um trabalho de revegetação em sua propriedade: lagoa
transbordando
Entre a degradação e a mudança no
regime de chuvas no Planalto Central, as nascentes do DF insistem em verter
água, mesmo com toda adversidade. Uma água que abastece os córregos, o cerrado
e toda a população da capital e do Entorno. Em seguida, continua a correr e é
responsável por outras bacias hidrográficas brasileiras. O problema é que os
aquíferos, que funcionam como reservatório que alimenta as minas, baixou, em
média, quatro metros nas últimas décadas. A consequência é a morte de alguns
desses olhos d’água, a diminuição no volume de rios e córregos e a queda nos
níveis dos reservatórios que distribuem o recurso natural para as torneiras dos
moradores.
O presidente do Comitê de Bacias do
Paranoá e pesquisador da Embrapa Cerrados, Jorge Wernek, explica que é
necessário preservar com igual cuidado a bacia hidrográfica como um todo, para
que os aquíferos mantenham o volume natural e as fontes continuem a alimentar
os afluentes. “A nascente é um afloramento do lençol freático. Se há
rebaixamento do lençol freático, a mina tende a diminuir sua vazão ou até
sumir”, detalha. Segundo ele, a mudança no regime de chuva na região fez com
que as precipitações se tornassem mais concentradas e durassem menos tempo. Com
isso, fica mais difícil para a água se infiltrar no solo e atingir o aquífero.
“Esse ‘chove e para’ é ruim para o abastecimento do lençol. ”
Legal ou não, a expansão urbana é outro
fator prejudicial. O processo de impermeabilização do solo, por asfalto e
concreto, faz com que a enxurrada corra para as galerias de águas pluviais e vá
direto para os córregos e rios da região. Esse volume se perde, não penetra no
lençol freático. “Consequentemente, a impermeabilização do solo também
atrapalha e a falta de conexão entre córregos e rios da região. Está
relacionado com a baixa do lençol. Outro fator que suprime as nascentes é o
assoreamento, causado pelo desmatamento ao redor de nascentes e afluentes”, argumenta
o pesquisador. O gerente de Gestão de Bacias e mananciais da Caesb, Fábio
Bakker, concorda. “Nosso produto principal é a distribuição de água. Como temos
muitas nascentes, não temos rios caudalosos, que são resultado da junção de
outros afluentes. Então, elas (as nascentes) são estratégicas”, frisa.
Bakker destaca que a diminuição na
vazão dos rios também reduz a qualidade da água usada pela população. “Se
diminuímos a quantidade de água, reduzimos a capacidade de lançar o esgoto
tratado no corpo hídrico, pois o poder de diluição diminui. No Planalto
Central, as nascentes são mais importantes que em qualquer outro lugar do país.
Estamos no berço das águas. Os rios nascem aqui ou a alguns quilômetros, no
Entorno. Sofremos com mudanças climáticas e, durante muito tempo, não tivemos a
gestão do território para controlar os mananciais. Pensamos apenas no deficit
habitacional. Águas Claras e Vicente Pires ocupam áreas de nascentes e o
Taquari vai entrar em uma área de recarga de aquífero. Isso tudo é prejudicial”,
enumera.
Ciclo vicioso
Fundada há mais de 40 anos, a
Associação do Condomínio do Sistema de Irrigação Rodeador (Cosir) sempre lutou
contra a grilagem de terras na região do Córrego do Rodeador, em Brazlândia.
Por isso, quem ocupa o cargo de presidente do grupo costuma ser alvo de
ameaças. “Os invasores mostram armas e fazem ameaças quando chamamos a
fiscalização”, conta Ricardo Kiyoshi, 38. O agricultor nasceu e cresceu na
região e, agora, lamenta ao ver o tratamento dado pela população ao Ribeirão
Rodeador. “Era tudo cheio de água. As nascentes vinham bem fortes. Tinha
agricultor que nem captava tanta água, porque os poços davam conta do recado o
ano todo.”
Neste mês, a Adasa cortou pela metade a
captação das águas para os produtores próximos ao Descoberto. “Agora, estamos
diminuindo nosso plantio. E isso traz um prejuízo econômico enorme. Se você
tira a matéria-prima do nosso trabalho, isso gera desemprego.” Outros
produtores ouvidos pela reportagem reclamam, inclusive, que respeitam as normas
de captação de água, enquanto invasores furtam o recurso natural com uma bomba
direto da nascente. É importante ressaltar que os mananciais são protegidos por
lei.
O que diz a lei
Promulgada pela então presidente Dilma
Rousseff, a Lei nº 12.727, de 17 de outubro 2012, é uma conversão da Medida
Provisória nº 571 do mesmo ano e determina normas para a proteção de vegetação
nativa.
A principal determinação sobre as
nascentes é que não pode haver nenhuma construção em um raio de 50 metros do
local. Além disso, caso o manancial esteja dentro de uma propriedade rural, o
dono poderá elaborar atividades agrossilvipastoris, por exemplo, “sendo
obrigatória a recomposição da mata em um raio mínimo de 15 metros”. A lei foi
criada para proteger “vegetação, Áreas de Preservação Permanente e Áreas de
Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal
e o controle da origem dos produtos florestais”.
Quer participar?
Para se cadastrar no projeto Adote uma
nascente, basta ligar no número 3214-5657
(*)Luiz Calcagno » Pedro Grigori* -Estagiário sob supervisão de Sibele Negromonte – Foto: Arthur Menescal/CB/D.A.Press -- Especial para o Correio Braziliense