Montagem do projeto original de Lucio
Costa (PPB, 1957) com a topografia. Fonte: J. Monte Jucá e L. Hermuch
O enigma Brasília é uma pirâmide de
quatro faces. A primeira e mais misteriosa se revela nas caminhadas rumo ao
Congresso. Você anda, anda e nunca chega. O Sol inclemente brilha no mármore
branco. Nenhuma árvore acode quem se arrisca pelo gramadão. As linhas de fuga
convergem para as duas torres impassíveis, quase glaciais. Em conjunto com as
cúpulas da Câmara e do Senado, formam um estranho monumento, monólito de uma
civilização perdida. Essa é a escala monumental, que causa espanto até entre os
nativos.
A escala gregária serve para trabalhar,
esbarrar em gente e comer pastel Viçosa. Percebe-se que tem mais de seis
andares e guarda uma afinidade com dinheiro e tudo mais que circula com
fluidez. Já vi a escala gregária na mão de flanelinhas e em maletas estilo 007.
Nesses domínios, sempre é preciso procurar por uma vaga e portar um crachá. Lá
estão as diversões, seja lá quais forem, e também os hospitais. O coração é
assaltado por esse contraste (e pelo óleo da fritura), de modo que se acende na
consciência um grande letreiro em neon e a gente teme pela brevidade da vida.
Embaixo dos pilotis, temos a escala
residencial, amiga dos prédios não reformados das 400, com seus azulejos
originais, intocados pelo granito. Lucio Costa quis das superquadras um
espírito de convivência sem igual neste mundo. Para tanto, contou com aliados
impúberes. As quadras só são “super” por causa das crianças, que gostam de
super-heróis e precisam gastar energia com bola, skate e bicicleta. Ainda é
assim? De qualquer forma, sobrevivem as grandes janelas, voltadas para árvores
que abrigam cigarras quando a chuva chove. Sobrevivem também as calçadas (nem
todas), o comércio local e as bancas de revistas.
Não estava no plano: Lucio teorizou
depois a escala bucólica, comparando-a a D’Artagnan, o quarto dos três
mosqueteiros. Um por todos e todos por um. Essa dimensão veio de mansinho
porque a grama precisava de tempo para pegar. É sabido que o ilustre urbanista
queria uma cidade-parque. A coisa chegaria à perfeição no dia em que os blocos
parecessem encravados numa floresta. Visto do alto, seria um mar verde com
pequenas ilhas de concreto e vocação para o devaneio (palavra que Lucio
adorava). A vizinhança do Lago Paranoá arremataria o projeto.
No ano que vem, Brasília completa 30
anos de inscrição na lista do Patrimônio Mundial da Unesco. O tombamento pelo
Iphan já tem 26 anos. As escalas ainda servem para balizar o que deve ou não
ser protegido. A ideia desta crônica veio da leitura do artigo “Brasília e o
patrimônio mundial — 2017”, de Márcio Vianna, e do ótimo livro Superquadra de
Brasília — preservando um lugar de viver. O PDF de ambos está disponível na
web. Hoje, numa roda de conversa na Banca da Conceição, arquitetos do Iphan vão
justamente abordar essas questões, que dizem respeito ao modo como habitamos a
capital.
Por: Gustavo
T. Falleiros– Correio Braziliense – Fotos/Ilustração: Urbanistas por Brasília - Blog - Google